"fraud after meaning" é uma frase de um desenho que fiz em 1986 - as teorias da fraude estavam no ar por essa altura, de Umberto Eco a Deleuze (veja-se o capitulo, "as potências do falso" no segundo volume de Imagem- Movimento)e à divulgação por Schnabel das Recognitions do William Gaddis - a cavalgada homeostética nas terras carnavalescas e do falso era teórica e fez-se mais do lado nietzchiano (deleuze e derrida) e de certa forma contra Braudillard, ou pelo menos, contra o modo como os americanos "posmodernos" o adaptaram (hoje Braudillard parece-me muito mais simpático)
uma sucessão de heterónimos, desde 85 surgiu-me como consequência lógica de uma teoria instintiva da fraude - no fundo Fernando Pessoa já teorizara mais do que suficientemente sobre o filão shakespeariano das máscaras e sub-máscaras - e de uma relação que é simultaneamente retórica e instintiva (mimética) com que nos envolvemos poéticamente com o mundo
o primeiro desses heterónimos foi Jacques Pastiche no ínicio de 1985, uma espécie de Erick Satie de segunda, e depois vieram Renato Ornato, Francisco Xavier, Karl Otto, Luis Mendonça, Augusto Barata, Aldo, o Marquês de Abrantes dito Eugénio, Julio Rato, etc.
Uma teoria explicita da dissimulação aparece em Francisco Xavier:
DO DISSIMULACRO
O que pro-voca a arte, o seu instinto, é a vontade de dissimulação.
Excluem-se duas hipóteses:
a hipótese mimética (da representação)
a hipótese de uma aporia relativamente ao mimético.
A primeira hipótese diz que a arte vem de um instinto antigo, o de simular.
O de simular um «outro».
O de procurar o acesso ao estranho.
O de tornar conhecido o que ainda não é
– simulações e hipersimulações tornaram-se hoje banais:
tudo pode ser simulado (aparentemente).
A segunda hipótese tem a mesma raíz, mas diz que nada pode ser completamente simulado.
Essa irredutibilidade cria uma margem de não-simulação.
Essa fissura é uma aporia indefenivel (aporia apeiron), sem contornos precisos.
Essa imprecisão ocular é aquilo a que se chama arte.
A nossa tese vai mais longe e acredita que o instinto que está na base das duas hipóteses anteriores é «a vontade de dissimular». Dissimular toma dois sentidos
a) o de adquirir uma aparência secretista, uma estratégia de pudor ou de ocultação.
b) o de criar aparências (representações) que surgem como desvio relativamente ao simulável. Há um desejo de excesso, de estranho (de mais estranho que o estranho), de activação de aquilo que parecia ser uma aporia.
A dissimulação é uma fraude.
«REFLEXO DE SOMBRA DE SIMULACRO DE FRAUDE»
A fraude é o que é passivel de passar por
manhas
ciladas
inumeráveis astúcias
A inacessibilidade da aparência, da realidade enquanto real (inatingivel, irrepresentável) postula o império das representações.
A fotografia (mimetismo sem simulação, ausência de esquematização, ausência dos efeitos do representante) é como tal a maior fraude
- apenas postula a pose
- impõe o desaparecimento do distorsor
Ora o distorsor (representante) é o que garante o acesso à não-fraude – isto é, à Verdade (fraude de fraude).
A fraude de fraude não é um truque de linguagem, ou uma simples enunciação, mas sim o desaparecimento da linguagem, o acesso à sua exterioridade.
Toda a linguagem é fraude.
O que nos sobra para além dessa fraude?
O nada?
O vazio?
O indefenido?
Sobra-nos sobretudo o fraudar e a instancia deste verbo acopulado com o nada, o vazio e o indefenido.
Admitimos com muita facilidade a fraude.
Mas
se a fraude for o motor que acopula os fundamentos
se a fraude for o fundamento dos fundamentos
o mal-estar assoma.
Assoma a partir do momento em que o que é passivel de ser fraude é admitido como FRAUDE.
Quando tudo o que pensamos é fraude o pensamento surge-nos como
um enorme pesadelo, como a impossivel suspensão de uma esfera em eminência de catástrofe.
O «mundo como fábula» de Nietzsche é o mundo como fraude, como interminável falsificação, em que tudo é farsa, em que tudo passa por tudo.
Mas mesmo no interior da fraude há
rasteiras
pequenas fraudes
dissimulações
desvios
fingimentos
arruídos
São pequenas ilhas que legitimam a fraude, que a encobrem, que são relativamente à fraude uma fraude.
O que é que a fraude supõe?
um encobrimento
uma mentira sábiamente escondida
uma arte de (se) ocultar
Destapado o véu temos a verdade nua e crua. O artifício e as artimanhas transparecem – tudo se torna claro!
Dir-se-ia que a fraude não diz respeito à natureza, ao mundo animal, e que não passa de um laboratório de ficções. Isto é falso.
A fraude introduz-se a partir do interior do mundo animal com a simulação, com os variados tipos de mimetismo, com o imitar o Outro ou passar por um outro.
O MIMETISMO ANIMAL É A FONTE DO FRAUDAR
Simulacro de fraude é o que permanece para além do fundamento.
A diferença mais específica (linguistica) entre fraude e simulacro é que o simulacro não pressupõe o ocultamento.
Simulacro é o que se mostra.
Geralmente pensa-se o simulacro em oposição a modelo ou protótipo, a algo que é origem ou originário.
O originário é a FRAUDE, isto é, o simular na ocultação:
simular de um simulacro na ocultação
SIMULACRO E FRAUDE
APENAS SE OPÕE
COMO REFLEXO E SOMBRA
O reflexo é a excelência dos espelhos.
O que devolve a luz.
O que a esclarece.
A polissemia da palavra SOMBRA liga-a directamente à ideia de ausência
falta de luz
opacidade
mistério
segredo
escuridão
O que está na sombra é o que está escondido, que não vê a luz.
A sombra, em princípio, não tem reflexo. Tem tendência em absorver a luz, em guardá-la nas suas entranhas.
A luz «é o que se dá a ver sem se mostrar» (Derrida)
Flectir quer dizer «dobrar».
Re-flectir é uma inecessante flexão.
É a circularidade e o regresso através dessa dobra.
A reflexão faz circular e regressar aquilo que se dá a ver sem se mostrar.
O reflexo é exactamente aquilo que se dá a ver.
Em visão é a parcela de luz que um objecto não retem.
Não é a totalidade da luz.
Os espelhos são os que reflectem mais luz, mais parcelas de luz.
Um espelho não reflecte na sombra.
A sombra é defenível como aquilo que não é reflexo.
O reflexo de sombra parece um paradoxo.
A ideia de que tudo é simulacro ou simulação (fingimento) leva-nos a dizer que o «simulacro é aquilo em que não há fraude».
O simulacro é o reflexo de um proto-tipo.
A fraude é a sombra.
O protótipo é a fraude.
A fraude é o lugar de onde vem a luz – a luz da fraude.
A fraude é aquilo que se dá a ver sem se mostrar.
O reflexo é o que dá a ver.
A sombra é o que não se mostra.
O simulacro é o que mostra. Mostra-se, em referência narcisica e exibicionista, demonstrando o seu protótipo.
O simulacro é o ver para crer.
Quando os americanos dizem we did it, expressam o simulacro consumado.
A fraude, pelo contrário é a grande permanência.
Só regressa à sombra no momento em que é defraudada.
A fraude vive pela sombra.
MAS A SUA APARÊNCIA É O REFLEXO DESSA SOMBRA.
Assim, o reflexo de sombra é a expressão apropriada para a
APARÊNCIA DA FRAUDE
Essa aparência simulada, exibida.
Essa aparência simulada na ocultação.
O que se dá a ver sem se mostrar do que se exibe ocultando.