em 1979 Foucault complementou com outros argumentos na conferência «o que é um autor» uma já antiga e emblemática conferência de Barthes sobre a «morte do autor»
a operação de Barthes (e em parte a de Foucault) não é muito diferente de um dito de Duchamp (ce sont les regardeurs qui font un tableau) - no fundo é destronar a imagem oitocentista e «castradora» dos grandes autores e reivindicar o direito, e o prazer ,de usufruir mais «aprazívelmente» o texto (penso em Barthes, o hedonista, e não em Foucault, o «estoico»)
confesso que a cultura do copyright me «constrange» um pouco (citar, parodiar, pastichar, remontar, re-escrever é fixe), mas trata-se de um puro exagero atribuir tantos nefastos efeitos ao «principio funcional» que Foucault atribui ao autor. E inquieta-me o final do texto - «o autor não procede a obra?»... então de onde vem a obra? De uma máquina? De um rumor anónimo? De um mundo que anonimamente fabrica coisas? Ou «o autor é uma figura ideológica graças à qual ser conjura a proliferação do sentido»? Uma «figura ideológica»? Não, a questão do poder do «autor» é apenas a do efeito de o que é, ou foi uma imanência. Uma «figura ideológica» é uma péssima desculpa e uma essencialização do que é um mero acto. Depois temos a parábola da circulação na «absoluta liberdade» do anonimato, a ideia-terror da desterritorialização absoluta a contrapor à ideia «burguesa», menos territorial do que se imagina, da «propriedade» autoral.
E então vem o grande final: «Todos os discursos, qualquer que seja o tratamento que se lhes imponha, desenvolver-se-iam no anonimato do murmurio. E já não se escutariam as estafadas perguntas - "Quem é que está mesmo a falar? É ele, deveras, e nada mais? Com que autenticidade ou originalidade? E o que é foi expresso de mais profundo no seu discuro?". Escutar-se-iam outras perguntas como estas "Quais os modos de existência deste discurso? Quais são os lugares reservados para possiveis sujeitos? Quem pode cumprir essas diversas funções do sujeito?". E por detrás destas perguntas não se escutaria mais que o rumor de uma indiferença. What difference make who is speaking?»
Que diferença faz quem fala? Pergunta Foucault. E a resposta em aberto é a de que faz «toda a diferença». Como também faz «toda a diferença» quem escuta e o que se escuta. A questão está exactamente na intensidade não só do produzido e da recepção, mas de quem dá o corpo na produção. Há uma espécie de apelo a uma indiferença generalizada que abre caminho para uma burocratização das significâncias. As questões interessantes que Foucault coloca burocratizam efectivamente o «texto» ao considerá-lo como dispositivos, mecanismos, transitos de linguagem, modos de coexistência eristica de poder,etc. É certo que a figura do autor obscurece e cega grande parte da percepção da obra... mas a alternativa seria caír ou numa rede formalista ou numa espécie de fiscalização ideológica (as aborrecidas genealogias de ninharias que os foucaultianos geraram), não muito longe de uma lógica de denuncia.
Longe deste filão está a frase de Artaud (um autor?) quando diz que é o estado do seu corpo que fabrica o juízo final. Ou de muitos casos menos apocalipticos (o filão Fluxus) em que a arte é a vida, com ou sem assinatura pespegada.
Bakhtine voltou a sublinhar alguns anos depois de Barthes e alguns antes deste Foucault que o esquecimento progressivo dos autores (depositários das palavras dos outros), leva ao anonimato e à monologização... no fundo, ao totalitarismo, que Bakhtine tão bem conhecia... a autoria é o garante de um estado «vivo» não fossilizado da linguagem, e da possibilidade de dialogo e da politonalidade discursiva... e consequente relativização (auto-parodia, ironia, etc.) da autoria, uma vez que é através desta que várias vozes falam...
o autor é consequência de uma «nominalização» da cultura, oposta à ideia essencializadora de que é são as linguagens ou outras estruturas que falam - mas sem faladores não há linguarejar -
o autor é uma imanência impura e defeituosa, um híbrido que também se deixa falar um pouco, mas que não é necessáriamente nem efeito, nem passividade, nem autenticidade - o autor literário é mesmo o desfazedor das hipocrisias da «autenticidade», um puro e «honesto» dissimulador (e vemos isto em obra nas peças de Shakespeare e tantos outros)
é claro que há situações de colaboração autoral que são ferteis, mas toda a autoria é precisamente uma colaboração com autores «contemporaneos» e com outros que os precedem e que não andam para aí a pastar nos mass-media
a autoria é algo que não podemos dissociar da consciência, por mais dificil de determinar que seja, por mais voluvel, voluptuosa, caprichosa e metamórfica que ela nos surja (e ela surge-nos tanto assim!) - a consciencia torna tudo contemporaneo, ainda que seja assistida por uma «consciencia histórica»
sonhar com as virtudes da indiferença e do anonimato é abrir portas demasiado obscuras - mas os autores Barthes e Foucault acabam vingativamente por regressar com os seus «imponentes» e fantasmagóricos nomes
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